CINE TROPPO
Marco Antonio Moreira Carvalho
Crítica/DVD
“O ESPELHO”
O Espelho (Zercalo, União Soviética, 1975), dirigido por Andrei Tarkovskiy é denso, complexo e com muitas alternâncias de foco. Tarkovskiy, sujeito e objeto de uma investigação do passado, a memória é analisada, ele a pesquisa profundamente e o que descobre é mostrado em imagens com os recursos próprios da linguagem cinematográfica.A primeira sequência, em preto e branco, mostra uma mulher tentando corrigir a fala de um jovem que articula mal as palavras. Ela o submete a exercícios acompanhados de palavras indutoras. Como final da terapia ela pede para ele repetir uma frase e ele a repete articulando corretamente as palavras. Na verdade, a primeira cena, colorida, é a de um rapaz ligando um aparelho de televisão, observando o monitor iluminado e em seguida afastando-se lentamente com o olhar no televisor. Ainda com essa cena visível ouve-se a pergunta: “- Qual é o teu nome completo?” e desenvolve-se a sequência da mulher e do rapaz gago. Após o jovem articular corretamente a frase “Eu sei falar.”, em russo, claro, é que começa a apresentação escrita do filme, com o título seguido do elenco e dos demais créditos.
Terminados os créditos, abre-se um plano geral de extenso terreno com vegetação baixa e árvores, até se perder no horizonte; em primeiro plano está uma mulher sentada em uma cerca de duas varas horizontais. Ela fuma um cigarro e olha para um vulto distante que vem em direção a ela. Uma voz masculina inicia a narração:
O caminho que começava na estação cruzava a aldeia de Ignatieva e virava um pouco antes de chegar à nossa pequena fazenda, onde, antes da guerra, passávamos todos os verões.
É o efetivo começo de uma das mais profundas e diversificadas análises da memória humana que assisti no cinema. Lembranças da infância à maturidade, o despertar da consciência, os relacionamentos familiares, remorso, culpa, desentendimentos, frustrações, o amor à pátria, o absurdo da guerra, a carga psicológica da mãe no relacionamento com a mulher, a disputa pelo filho, o despertar do amor, as incompreensões na hora da morte, o corpo, a alma enfim, a vida.Espaço e tempo não têm os limites da realidade nesta obra de Tarkovskiy. Ele os manipula criativamente avançando e recuando no tempo em diversas situações, deslocando as ações por espaços variados. Realidade, fantasia e delírio estão presentes com a mesma força expressiva. A formação do cogumelo durante a explosão de uma bomba atômica e o pouso de um passarinho na cabeça de um jovem, no conjunto, são tão significativos quanto o corpo de uma mulher flutuando horizontalmente, sem sustentação física, acima de uma cama e a movimentação da frágil vegetação com a passagem de um vento forte.
Os poemas recitados, a narrativa em si e as especulações verbais interconectam as imagens em uma cinematografia especial.
No início, após a chegada do homem que se aproximava da mulher, ele é um médico, depois de algumas palavras, ele senta-se na cerca que quebra ao peso dos dois. No chão, olhando para a vegetação, ele faz um discurso de exaltação à natureza: “- Caí e o que vejo...Raízes, arbustos [ele vai se levantando e continua argumentando para a mulher] Nunca lhe pareceu que as plantas também sentem, pensam, raciocinam até? As árvores, as aveleiras, [...] Estão calmos, livres de correria, da azáfama. Também das banalidades. Tudo isto só a nós diz respeito. Porque não acreditamos na natureza que está em nós. Sempre desconfiados, agitados. Sempre sem tempo para pensar.”. Tarkovskiy mostra logo que nos desconectamos da natureza e isto é ruim.
No decorrer do filme, planos gerais e planos de detalhe dos ambientes naturais são incorporados funcionalmente ao drama humano. Na verdade, o diretor trata com muito cuidado, também, os ambientes internos, os compartimentos das casas, a arrumação dos móveis e dos objetos em cada espaço. Espelhos aparecem não apenas como elementos decorativos, mas como peças importantes para a sequência narrativa; frequentemente as imagens refletidas em espelhos são o foco principal da câmera, o destaque é na imagem no espelho.
Não se espere compreensão fácil e muito menos completa. Lembranças são marcadas pela sensibilidade individual e pelas marcas que os fatos deixam nas pessoas, sujeitas às interpretações e preferências de quem as externa e que podem conter símbolos, exageros, fantasias e até delírios. No caso do cinema, as possibilidades de expressar lembranças das mais variadas praticamente são ilimitadas, indo de fatos reais a delírios. Imagens luminosas, palavras, música, ruídos, são elementos que podem ser utilizados com uma ampla liberdade, limitada apenas pela criatividade do realizador.
A história de O Espelho é de Aleksandr Misharin e de Andrei Tarkovskiy, com poemas de Arseni Tarkovskiy recitados por ele mesmo. A fotografia de Georgi Rerberg e a música de Eduard Artemiev com trechos de Bach, Pergolése e Purcell, como em todo grande filme, sobretudo se complexo, abrangente e diverso em enfoques, são fundamentais na construção progressiva resultante de partes com características próprias, mas conectadas para harmonizar a obra. O Espelho reflete tudo isso, e muito mais; é instigante, perturbador, emocionante, belo. (Arnaldo Prado Júnior).
*”O Espelho” foi exibido recentemente no cineclube Alexandrino Moreira, provocando um excelente debate entre a crítica especializada e o público. (Marco Moreira)
ESTREÍAS DA SEMANA
“Busca Implacável 2”, “Hotel Transilvânia” e “Até que a Sorte nos Separe”.
Próximos Lançamentos (Destaques)
“Fausto” de A. Sokurov (Dia 18/10 - Cine Estação)
“Mostra de Filmes – TARZAN” (Dia 16/10 - Cine Olympia)
AGENDA
*Cineclube Alexandrino Moreira : Dia 15/10, será exibido o primeiro filme da Trilogia das Corês de autoria do cineasta polonês K. Kieslowski com “A Liberdade é Azul” às 19 h com entrada franca e debate. Os outros filmes da trilogia serão exibidos em novembro e dezembro, respetivamente.
*Cine Olympia: Hoje é o último dia do festival de Terror com a exibição de “O Iluminado” de Stanley Kubrick às 18:30 h e entrada franca. De Terça (dia 09) à sexta (da 12), o Olympia vai exibir curtas-metragens sobre o Círio de Nazaré. Dias 13 e 14/10 não haverá exibição devido ao Círio de Nazaré.
*Cine Líbero Luxardo: Enquanto o cinema está fechado para reformas, acontecerá o projeto Plano Sequência na Fonoteca Satyro de Mello (4º andar do Centur). No período de 04 a 06 e de 18 a 20 de outubro, às 19h, acontecerá a mostra Glauber Rocha com a exibição de "Memória de Deus e do Diabo em Monte Santo e Cocorobó" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Entrada Franca.
*Cine Estação: A partir de 18/10, estreia “Fausto” de A. Sokurov, considerado um dos melhores filmes do ano pela crítica especializada.
*Cineclube da Casa da Linguagem: Em parceria com a ACCPA, em Outubro acontecerá um ciclo em homenagem ao diretor Howard Hawks com a exibição de “Onde Começa o Inferno” (dia 09) e “Scarface : Vergonha de uma Nação” (dia 23) às 18h com entrada franca..
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